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07/01/2022 - 06:22 | Atualizada: 07/01/2022 - 11:29

Internet mira Bolsonaro em “Não Olhe Para Cima”, mas o filme vai muito além

Como costuma ressaltar uma velha frase de efeito, “não se falou de outra coisa” nas redes sociais, no início da semana. Uma dupla de astrônomos descobre o risco iminente de uma catástrofe – o choque de um cometa com a Terra – e toma a única providência possível: avisar as autoridades sobre o perigo real. Por conta das conveniências políticas e midiáticas, acabam desacreditados.

Esse é o enredo de Não Olhe Para Cima (Don’t Look Up), filme dirigido por Adam McKay e lançado pela Neflix no dia 24 de dezembro, tendo no elenco estrelas como Leonardo DiCaprio, Jennifer Lawrence e Meryl Streep. Uma tragicomédia que fala, satiricamente, sobre a dura realidade – e mais duras consequências ainda – do negacionismo científico.

Com o avanço da internet, ao mesmo tempo em que o globo se envolveu de forma cada vez mais íntima e contínua com a informação a partir de conexões em tempo real, mais essas conexões em busca de informação se tornaram informais. As redes sociais e os aplicativos de conversação trouxeram a figura icônica da “tia do zap”, aquela pessoa que acha que só é verdade aquilo que recebe no grupo da família ou no perfil de um político que admira.

No início da semana, logo depois de sua estreia, o longa-metragem foi um dos maiores tópicos de repercussão no Twitter, no Facebook e em outras redes. Em meio à intensa polarização ideológica no Brasil, em que usar máscara e apoiar vacina viraram atitudes de “esquerdistas”, nada mais comum do que ver no filme também a projeção das próprias ideias sobre o cenário político-eleitoral conjuntural. E assim se projetou, em vários memes, a associação entre pessoas que entraram para a história da pandemia no País e os personagens do enredo da película.

É bem verdade que, dados os tipos protagonistas do filme, não dá para deixar de fazer uma comparação à vida real: a presidente dos EUA, Janie Orlean, interpretada por Meryl Streep, “parece” mais Donald Trump do que Jair Bolsonaro, mas o comportamento de seu filho Jason Orlean (Jonah Hill) – inspirado, na verdade, no genro do ex-presidente estadunidense, Jared Kushner, seu conselheiro e assistente – lembra bastante o vereador Carlos Bolsonaro, o filho “02” do mandatário brasileiro. Em um caso em que a arte imita a vida, no papel da doutoranda Kate Dibiasky, Jennifer Lawrence parece incorporar a pesquisadora brasileira Natália Pasternak: em uma cena de um programa de TV, Dibiasky surta ao vivo com as firulas dos apresentadores diante da notícia alarmante e urgente e grita que “todos vão morrer!”. Natália havia feito algo parecido ao se irritar profundamente com uma reportagem que refletia sobre o estresse com quem não quer usar máscara no meio da pandemia.



O filme, divertido apesar do enredo pesado, não é uma obra-prima da sétima arte, mas cumpre seu papel: traz ao debate não apenas uma crítica a quem se nega a reconhecer os fatos objetivos tais como narrados pela ciência ou vê por trás dela interesses ocultos e maléficos.

Mas, claro, é muito mais do que um filme sobre Trump ou Bolsonaro, ou mesmo sobre o momento pandêmico. Tanto não se restringe a isso que foi idealizado em 2019, antes do novo coronavírus surgir. Na verdade, o filme em tese apelaria muito mais para a metáfora do aquecimento global como o cometa que inexoravelmente atingirá em pouquíssimo tempo o planeta se nada for feito. Diante do aviso da ciência, as pessoas reagem de uma forma usual quando são incomodadas por algo verdadeiramente fatalista: negam o fato. Isso vale para as autoridades, para a imprensa e até mesmo para parte da classe científica, que, por holofotes, por interesses ou por crença, passam a praticar uma espécie de anticientificismo, dando autoridade de fala a quem não a tinha.

Se vale a pena assistir Não Olhe Para Cima? Vale muito a pena, pela forma didática com que expõe a reação humana diante de uma hecatombe iminente. Por isso, a melhor forma de assisti-lo é se libertar da prisão em um cenário apenas – no caso, as alusões ao governo Bolsonaro.

Dessa maneira, é possível entender de forma mais ampla como a protelação de medidas diante de algo grave – inclusive na dimensão pessoal, é preciso ressaltar – não vão extinguir a gravidade do fato. Esperar não é saber, diria o trovador dos anos 60. Muito menos diante de tantos sinais.

 
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