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14/04/2020 - 06:41 | Atualizada: 14/04/2020 - 08:10

O presidente pode mentir para o STF?

No começo de abril, a Ordem dos Advogados do Brasil abriu ação no Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo para impedir que o presidente da República, Jair Bolsonaro, cumprisse ameaça que fez publicamente de decretar o relaxamento do isolamento social decidido por governadores e prefeitos para evitar a aceleração do contágio do novo coronavírus. Sorteado para relatar o caso, o ministro Alexandre de Moraes mandou ofício à Advocacia-Geral da União (AGU) interpelando se o chefe do governo cumpria, ou não, as recomendações a esse respeito feitas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e pelo Ministério da Saúde, cujo chefe fora nomeado por ele. No sábado 4 de abril, o titular da AGU, André Mendonça, respondeu que sim, seu chefe seguia tais providências.

No entanto, na Quinta-Feira Santa, 9/4, Jair Bolsonaro saiu para passear numa região comercial do Distrito Federal, entrou numa padaria, exigiu ser servido no balcão, o que é proibido pelo decreto do governador Ibaneis Rocha, misturou-se com a aglomeração, também proibida, e fez questão de cumprimentar os circunstantes. Nem ele nem os numerosos membros de sua escolta usavam máscara cirúrgica ou mantiveram a distância regulamentar de dois metros das pessoas que posaram com ele em selfies. No dia seguinte, Sexta-Feira Santa, 10, foi ao Hospital das Forças Armadas e, de lá, a uma farmácia, onde repetiu o ritual e ainda fez uma piada absolutamente incompatível com o momento terrível pelo qual passa o País que governa. Um repórter lhe perguntou o que fora comprar na farmácia. E ele respondeu que teria sido um teste de gravidez.

No dia seguinte, festejado pelos cristãos como Sábado de Aleluia, o ritual foi repetido pela terceira vez seguida. Ao lado do governador de Goiás, Ronaldo Caiado, que rompera com ele exatamente pelas divergências entre ambos em torno do isolamento, que chama de “horizontal”, e do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, visitando a obra de um hospital de campanha em Águas Lindas, a 56 quilômetros de Brasília, estendeu a mão para uma admiradora beijar.

Ou seja, a resposta do representante judicial da instituição Presidência da República ao STF foi uma desrespeitosa mentira. A questão que fica é: essa agressão sem propósito não merece algum tipo de punição?

Seja qual for a resposta, o relator concedeu liminar à autora da ação, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), proibindo o chefe do Executivo de decretar a suspensão de medidas preventivas contra a veloz contaminação do novo coronavírus chinês que vierem a ser adotadas pelos governadores estaduais e prefeitos municipais.

Mas no mesmo Sábado de Aleluia em que o presidente afrontou o governador goiano e o ministro da Saúde, que ele escolheu e nomeou para ocupar uma pasta na Esplanada dos Ministérios, o funcionário que mentiu em nome do chefe ao órgão máximo do Poder Judiciário, teoricamente autônomo, distribuiu no fim de semana da Páscoa uma nota oficial deixando claro que o presidente não cumprirá a ordem. Este mesmo já tinha dito antes que recorreria contra a liminar. Até aí, tudo bem. Está no direito dele. Quanto à ameaça feita pelo advogado-geral da União, ela faz parte de uma narrativa eleitoral de uma disputa a ser realizada em dois anos e sete meses. A nota do pastor e protegido de Dias Toffoli, presidente do STF, será usada para pespegar no peito de João Doria, Wilson Witzel, Ronaldo Caiado e do próprio Mandetta, se necessário, o rótulo de que deixaram os desempregados pela pandemia ao relento. Enquanto o herói da luta contra o desemprego, o presidente que pretende ser reeleito, passaria a ser o novo pai dos pobres, como o foram no passado Getúlio Vargas e Lula da Silva.

Convém acrescentar que André Mendonça – cuja carreira até o topo na AGU foi patrocinada pelo ex-advogado do PT na presidência do STF e do Conselho Nacional de Justiça – é autor de pelo menos um artigo endeusando o ex-presidiário e coordenador de um livro louvando o dr. Toffoli, comemorando os dez anos de sua entrada no “pretório excelso”. A nota da AGU foi divulgada logo depois do anúncio de restrições com que o governador de São Paulo, João Doria, pretende reduzir a fuga dos paulistas do isolamento social seguindo as pregações de chefe de Mendonça,  ou seja. negando o que este tinha garantido estarem sendo seguidas à risca.

No Domingo de Páscoa, aliás, o presidente da República, desmentindo mais uma vez o que seu advogado garantiu ao STF, disse a dirigentes de seitas evangélicas que “parece que está começando a ir embora essa questão do vírus, mas está chegando e batendo forte a questão do desemprego”. Ao contrário do que disse na live para seus seguidores que ocupam púlpitos em templos evangélicos, contudo, a realidade indica na direção oposta, pois a curva de incidência e letalidade da covid-19 sobe sem parar, a uma velocidade assustadora. Manaus não tem mais leitos com respiradores e o prefeito da cidade, Arthur Virgílio, não contemporizou com o Messias do Planalto. “O presidente Bolsonaro é, hoje, o principal aliado do vírus”, disse. Segundo Edson Aparecido, secretário municipal de Saúde no epicentro da epidemia no País, São Paulo, 60% dos 1.662 novos leitos de baixa e média complexidade foram ocupados por pacientes com Covid-19. “Mesmo com todos os leitos que ainda vamos instalar, os dados mostram que tudo será ocupado muito rapidamente. Seguramente a gente vai ocupar em um curto espaço de tempo”, garantiu. Conforme dados oficiais do Ministério da Saúde, divulgados na segunda-feira 13, subiu para 13.717 o número de casos confirmados de coronavírus no Brasil. Foram 1.661 novas confirmações em 24 horas. Ou seja, o vírus não está saindo…

Ainda assim, o procurador-geral da República, Augusto Aras, comensal dos banquetes do PT à época da roubalheira de Lula e sua gangue e indicado para o cargo por um amigo do peito do presidente, Alberto Fraga, pretendente ao Ministério da Justiça no dia em que Bolsonaro se sentir com força para demitir Sergio Moro, recorreu contra a liminar concedida por Moraes, a que este texto se refere. Ele despachou que o presidente Jair Bolsonaro tem o direito de decidir sobre o “momento oportuno” para maior ou menor distanciamento social no enfrentamento do novo coronavírus. No parecer, ao qual o Estado teve acesso, o sucessor de Raquel Dodge afirmou também que, como o mundo passa por uma “crise sem precedentes”, repleta de “incertezas”, não é possível avaliar hoje, com precisão, se a estratégia de limitar a circulação de pessoas tem eficácia para impedir o avanço da covid-19.

Aras ainda não informou ao distinto público ameaçado pelo vírus terrível quando desembarcou do mundo da lua. Pois a vida real aqui, na Terra, é muito diferente. Por exemplo, hoje o epicentro mundial da pandemia é Nova York. Segundo o noticiário que abriu esta semana pós-Páscoa, “o Estado de Nova York somou 758 mortes em 24 horas em decorrência da covid-19. Agora, Nova York tem 9.385 óbitos atribuídos à doença pelo novo coronavírus, e deve superar a marca dos 10 mil mortos nas próximas horas”. Tais informações foram divulgadas pelo governador do Estado, Andrew Cuomo, em coletiva de imprensa transmitida nas redes sociais. Também dos EUA vem a notícia de que o epidemiologista que convenceu o presidente Donald Trump a deixar o negacionismo a que Bolsonaro se agarra, Anthony Fauci, afirmou que, “se o isolamento não tivesse tardado, não estaríamos registrando tantas mortes”. Esta é uma crítica a Cuomo, democrata de esquerda, que retardou a adoção do isolamento, mesmo quando ela era pretendida pelo presidente. “A pergunta é: o que aconteceria se não fizéssemos nada? O número subiria para entre 1,5 a 2,2 milhões de pessoas morrendo. Isso não seria possível, você veria pessoas morrendo nos lobbies de hotel, nos aeroportos. Isso não poderia continuar”, disse Trump na semana passada.

É possível encontrar no texto de um grande advogado brasileiro o recado certo para iluminar o cérebro de Aras, ocupado apenas em bajular o chefe do Executivo. No artigo publicado segunda-feira 13 na página A2, o ex-ministro do Trabalho e ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho Almir Pazzianotto Pinto pregou o prego e virou a ponta, pontificando: “Países que subestimaram o isolamento pagam alto preço em número de infectados e mortos. (…) A pandemia trará prejuízos inevitáveis. Para o Brasil significa mais uma década perdida. Não há como evitá-lo.”

É isso, doutor: a escolha de Sofia que o anjo da morte sugere não existe. Mais cadáveres nas calçadas não reduzirão a recessão inevitável.

*Jornalista, poeta e escritor

 
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