Se você votou no presidente Jair Bolsonaro (sem partido) por acreditar que o ministro da Economia, Paulo Guedes, o “Posto Ipiranga” da nova gestão do governo federal, levaria o Brasil rumo ao liberalismo econômico, você tem duas opções: assumir que sabia que isso nunca ocorreria ou admitir que foi enganado por um militar da reserva que sempre apostou no Estado forte. Inclusive contra os adversários políticos.
É preciso falar a verdade. O que era a agenda Guedes? Um amontoado de palestras bem ministradas, nenhum plano econômico e um monte de preconceitos contra empregadas domésticas, servidores públicos e pequenas empresas? Com exceção da reforma da Previdência Social aprovada em 2019 após boa ajuda do Congresso Nacional, o ministro da Economia dito liberal nada mais tem a apresentar.
O programa de privatizações nunca saiu do papel. Resta ainda a dúvida se um dia chegou a ser traçado ou era apenas representado por frases bonitas ditas em entrevistas desmentidas horas depois por Guedes em lives com representantes do setor bancário brasileiro. A saída de Salim Mattar da Secretaria de Desestatização foi só a evidência do óbvio.
Saída dos secretários
Quando Paulo Uebel deixou a pasta responsável pela desburocratização do governo federal no Ministério da Economia, já se sabia que a gestão Bolsonaro flertava com a quebra do teto de gastos. Desmentiu na quarta-feira, 12, quando estava ao lado dos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP). Mas bastou a live semanal no dia seguinte para Bolsonaro admitir os planos e mandar um recado ao mercado: sejam patriotas.
Curioso é que o presidente, guiado por seu ministro da Economia, tentava negar o óbvio no início da pandemia, quando base e oposição avisavam que era preciso socorrer a população durante o crescimento de casos da Covid-19. O auxílio emergencial que Bolsonaro e Guedes não queriam pagar, mas depois toparam liberar os R$ 600 para pessoas em situação de urgência, como informais e desempregados, por três meses, foi ampliado.
O que duraria três meses virou um benefício de cinco parcelas. Mas a proposta dos militares e do presidente é a de que o auxílio emergencial se torne um programa contínuo batizado de Renda Brasil. Tentaram até morder recursos do Fundeb para o novo Bolsa Família. Ainda não se sabe de onde virá o recurso, mas tentativas estão em discussão com o Congresso para manter os R$ 600 mensalmente pagos a mais de 65 milhões de brasileiros que urgem pelo dinheiro para comer.
Pobreza assustadora
Sim. Infelizmente o Brasil é um país com uma quantidade enorme de miseráveis que nunca viram ou deixaram de ter acesso a R$ 600 por mês com a crise econômica agravada a partir de 2015. As promessas de novos empregos da reforma trabalhista do governo Michel Temer (MDB) ajudaram a precarizar as condições dos contratos e os empregados se viram sem alternativa para sobreviver.
Muitos viraram motoristas ou entregadores por aplicativo. São trabalhos que não oferecem garantias, direitos trabalhistas ou vínculos empregatícios. Além da péssima e injusta remuneração por corrida. São constantes os relatos de motociclistas, ciclistas e pessoas a pé famintas que carregam nas costas a comida dos clientes de restaurantes e lanchonetes que oferecem seus produtos pelas plataformas, que são as únicas que lucram.
Nessa realidade, R$ 600 para quem já estava desempregado, perdeu o trabalho durante a pandemia ou recebia até R$ 200 no Bolsa Família é a chance de não passar fome. Pode parecer absurdo, mas para muita gente no Brasil R$ 600 é uma fortuna. Pouco mais da metade de um salário mínimo.
Eu liberal?
Sem declarações polêmicas em entrevistas quebra-queixo na porta do Palácio da Alvorada, Bolsonaro começa a parecer moderado para uma parcela considerável da população | Foto: Alan Santos/PR
Bolsonaro, que nunca foi liberal, mas engoliu o discurso de Guedes para ter o que apresentar na campanha de 2018, logo viu que o benefício que não queria pagar se tornaria a salvação de sua popularidade. Justamente criticado por opositores, ex-apoiadores e imprensa, o chefe do Executivo via sua rejeição crescer acima dos 40% enquanto inflava o discurso radicalizado, participava de manifestações e convocava reuniões com conteúdo altamente golpista contra o Supremo Tribunal Federal e o Congresso.
O basta no discurso autoritário – ou a redução pública das amostras agressivas – veio com o susto que a prisão do ex-assessor parlamentar Fabrício Queiroz, amigo da família Bolsonaro e que atuou nos gabinetes de Jair e do filho Flávio Bolsonaro, senador pelo Republicanos do Rio, causou. Era hora de se recolher com ideias violentas e começar a remodelar a base de apoio.
Os olavistas foram escanteados, mas não totalmente, relegados ao segundo escalão do governo. Foi um alívio para a imagem de Bolsonaro a saída do País do ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub. A crise de imagem era grande pela troca de dois médicos no Ministério da Saúde, que foi entregue interinamente a um militar que se dizia especialista em logística durante a pandemia da Covid-19, além da desistência de permanecer no governo do ex-juiz Sergio Moro.
Moro pré-candidato
Moro, inclusive, já começou as andanças como pré-candidato a presidente da República em 2022. De acordo com pesquisa recente do PoderData, instituto de pesquisa ligado ao Poder360, apenas o ex-ministro da Justiça e da Segurança pública teria condições de empatar no segundo turno presidencial com Bolsonaro.
A aposta em gastar mais e abandonar a agenda inexistente da economia de gastos começou a dar bons resultados, como mostrou a pesquisa Datafolha divulgada na sexta-feira, 14. Bolsonaro passou a ter o governo avaliado como bom ou ótimo por 37% dos entrevistados.
O crescimento para o levantamento anterior foi de cinco pontos percentuais. Um aumento muito considerável para quem apanhava dia sim, no outro também, enquanto falava absurdos à porta do Palácio da Alvorada para euforia dos apoiadores irrestritos.
Declarações quebra-queixo
Outra situação que ajudou bastante Bolsonaro foi o fim das entrevistas quebra-queixo na porta do Alvorada. As polêmicas declaradas à imprensa rendiam manchetes mais do que negativas, culpa do próprio presidente, adorador de ideias inaceitáveis. Tanto o clima acirrado no noticiário diminuiu, já que falas causam mais polarização e debates na opinião pública do que apurações jornalísticas sobre suspeitas de corrupção na família do presidente.
Na era da pós-verdade, das fake news, das redes sociais e suas bolhas que falam cada vez mais para si numa unificação obrigatória de discurso, não ter frases polêmicas diárias do presidente sugere – ao menos aparenta – certa moderação no comportamento. Isso ajuda parte da classe média, estudantes e os mais ricos a aceitarem mais Bolsonaro como alguém que se corrigiu. Mesmo que todos saibam que isso não é bem uma verdade.
Tanto que a avaliação ruim ou péssima do governo na última Datafolha recuou de 44% para 34%, queda de dez pontos percentuais. Algo que só parece assustador ou inexplicável para quem acompanha política como se estivesse na arquibancada no meio da torcida de seu time do coração em um estádio antes da pandemia.
Nova base eleitoral
Presidente Jair Bolsonaro foi buscar o ex-presidente Michel Temer (MDB), que entende como formar aliança com o Congresso, para liderar a missão de ajuda brasileira em Beirute, no Líbano | Foto: Alan Santos/PR
Mas a somatória de mais de 65 milhões a receber o auxílio emergencial de R$ 600, que chega a R$ 1,2 mil no caso da mulher responsável por manter a família, com a falta de declarações agressivas, autoritárias, antidemocráticas e golpistas, ajuda a aceitar mais o presidente para uma parcela considerável da população.
E a pandemia? Como explicar a alta na avaliação positiva de um governo que virou as costas para mais de 106 mil mortos por Covid-19? Que desdenhou da doença e pouco fez? Quando atuou, mandou kits de testagem com menos reagentes do que o necessário, cancelou a compra de respiradores e pensa em usar o dinheiro do combate à pandemia na construção de obras de infraestrutura?
Os números doem. As mortes machucam. Mas o impacto diário da pandemia já foi naturalizado pelas pessoas, que se cansaram do “fica em casa”. É triste dizer isso, mas até quem defendia ferrenhamente o isolamento social voltou à rotina dentro do possível, abandonou a proteção do lar e resolveu viver com amigos a chegada da chuva de meteoros, a reabertura do bar ou da academia que gosta de frequentar.
E os mortos?
Para muitos, mais de mil mortos diários de uma nova doença se tornaram apenas mais uma tragédia do cotidiano. Outros dependiam da reabertura para sobreviver. Muitos que tiveram contratos suspensos ou foram demitidos conseguiram alguma renda com a volta do funcionamento das atividades não essenciais. Ninguém nem lembra que o próprio governo federal pouco fez para ajudar empresários, sem linhas de crédito facilitadas ou com condições mais acessíveis.
Se quem pode ficar em casa já se cansou da limitação que é se manter entre quatro paredes o tempo todo, imagine quem precisa se arriscar em ônibus lotados para ter o que levar para casa ao fim do dia, nem que seja um pão velho para os filhos? A realidade da pandemia é injusta por intensificar e escancarar ainda mais as diferenças no acesso ao atendimento médico, às possibilidades de trabalhar em casa para poucos e a chance de ganhar dinheiro para sobreviver.
O discurso de Bolsonaro, que menosprezou a gravidade da Covid-19 no Brasil desde o começo, segue mais do que equivocado. A história e, talvez, a Justiça serão impiedosas com o que o presidente tem feito durante a pandemia: apostado na defesa de medicamentos comprovadamente sem eficácia no tratamento da doença, incentivado as pessoas a deixarem suas casas e defendido apenas os CNPJs, que também precisam de atenção.
Retomada
Mas com a reabertura veio o funcionamento de muitas atividades, não todas, que ficaram, em alguns casos, mais de cem dias impedidas de funcionar. O mesmo erro citado aqui, da falta de acesso facilitado ao crédito, não é observado. O que fica para grande parte da população é a necessidade de retomar as atividades de antes. Mesmo com o agravamento da pandemia no País.
O discurso de Bolsonaro não venceu qualquer batalha, apenas foi conveniente para justificar o afrouxamento de medidas de restrição das atividades não essenciais. Sem contar que prefeitos em busca da reeleição teriam dificuldades nas urnas se mantivessem o comércio fechado. Seriam injustamente atacados por uma parte oportunista da oposição. Não é uma equação fácil para ninguém.
Com o acerto econômico e eleitoral do auxílio emergencial, Bolsonaro se manteve em campanha e intensificou o discurso de campanha para 2022. Sim. O presidente nem tinha assumido o cargo e se mantinha no palanque, do qual nunca desceu.
Sempre no palanque
Auxílio emergencial e investimento em infraestrutura são agendas que garantem boa recepção a Bolsonaro em Estados nos quais o presidente teve dificuldades eleitorais em 2018 | Foto: Alan Santos/PR
Ao abandonar a retórica liberal impraticável de Paulo Guedes, Bolsonaro pode apostar no aumento de gastos, inclusive com o fim do teto das despesas públicas, para tocar obras, retomar o Minha Casa, Minha Vida, ampliar o Bolsa Família no Renda Brasil e facilitar sua caminhada para ser reeleito.
O que vamos acompanhar é como o governo conseguirá cobrir a cara conta dos gastos do auxílio emergencial e das obras de infraestrutura. Seja pela perspectiva do equivocado milagre econômico da ditadura militar ou do PAC dos governos petistas, Bolsonaro precisará aumentar a arrecadação durante a crise econômica agravada pela Covid-19.
Virá mesmo a nova CPMF? Conseguirá Guedes aprovar o CBS, imposto que unificará PIS/Pasep e Cofins com aumento da alíquota sobre serviços de 12%? Uma certeza nós temos. A classe média, mais uma vez, pagará a conta. Inclusive com o fim da dedução de gastos com saúde, educação e dependentes no Imposto de Renda.
Como fica a oposição?
Como quem recebe o auxílio emergencial quer ter dinheiro, independente se ele vem de um liberal, um nacionalista, desenvolvimentista, progressista, conservador, da direita ou da esquerda, a oposição terá um grande desafio. Se o Renda Brasil decolar com a criação de novos impostos ou outras formas de arrecadação, o apoio bolsonarista em redutos ligados ao PT nas últimas duas décadas tende a crescer.
Assim como a oposição, Bolsonaro agora defende abandonar o teto de gastos públicos, a ampliação dos programas de assistência financeira a famílias em situação de vulnerabilidade e aposta em uma agenda ampla de entrega de obras. Como será criticar a nova pauta econômica da gestão Bolsonaro sem ferir suas próprias bandeiras? A resposta só virá nas eleições de 2022.