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Para garantir legitimidade, tribunais de contas devem prezar pela segurança jurídica

03/06/2018 - 08:08 | Atualizada em 03/06/2018 - 08:21

Ismar Viana

Pouco mais de trinta dias após a sanção do PL 7.448/2017, que deu ensejo à Lei 13.655, de 25 de abril de 2018, e incluiu dispositivos na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, começam a surgir questionamentos voltados a perquirir o alcance que as mudanças intentadas pelo legislador efetivamente produziram ou produzirão no âmbito dos tribunais de contas do Brasil, nos aspectos estruturais, de funcionamento, mas, sobretudo, no que diz respeito à observância do devido processo legal de controle externo, de cuja regularidade depende a materialização do direito à fundamentalidade da regular atuação do próprio órgão de controle externo.

A Lei 13.655/2018 incluiu na LINDB disposições sobre segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do Direito Público, do que se extrai, logo de início, manifesto reconhecimento da necessidade de mudança no plano do agir institucional de controle. Esse é o texto topograficamente alocado na Lei, em ordem de prioridade, logo no primeiro artigo incluído.

Para além de diferenciar a esfera controladora da administrativa e judicial, o legislador impôs deveres de abstenção aos agentes integrantes de instituições de controle, sem a observância dos quais a decisão do processo controlador, administrativo ou judicial será, no mínimo, passível de questionamento.

Partindo de uma interpretação teleológica, é importante registrar que as mudanças na LINDB foram impulsionadas por um contexto de alegações relacionadas, essencialmente, à “ineficiência administrativa” e à “insegurança jurídica” do processo sancionador de controle, sendo a otimização na prestação dos serviços públicos, obtida a partir do alcance da segurança jurídica nas relações com o Poder Público, o efeito esperado com as mudanças. Para que isso ocorra, contudo, são necessárias alterações no funcionamento das instituições de controle, que devem atuar dentro dos limites estabelecidos. Esse é o fundamento no qual o controle se sustenta e o motivo pela qual o controle deve ser pautado em regras claras, objetivando garantir a preservação do princípio da separação dos poderes, da segregação das funções, legitimando, assim, a esfera controladora.

Ao se referir, no artigo 27, à “decisão do processo”, o novo texto da LINDB deixa claro que a segurança jurídica a que alude é direcionada a toda a marcha processual que desencadeia a decisão, incluindo as fases de instrução, juízo de conformação legal e judicante, até porque o princípio da segurança jurídica tem como corolário o dever de proteção da confiança, que deve ser entendido como a confiança que o cidadão precisa manter nas instituições republicanas, especialmente as de controle.

Ingo Wolfgang Sarlet[1] afirma que o direito à segurança jurídica compreende o direito do cidadão de poder confiar na eficácia e efetividade dos direitos que são assegurados pela ordem jurídica. O autor defende que se trata de direito fundamental da pessoa humana, princípio fundamental da ordem jurídica estatal e da própria ordem jurídica internacional, de modo que a dignidade não restará atingida e respeitada num lugar onde as pessoas não estejam mais confiando nas instituições estatais.

Nessa linha, uma leitura superficial do artigo 20 da LINDB é suficiente para se extrair a necessidade de observância da motivação nas decisões controladoras e da segurança jurídica nas ações de controle, com vistas a garantir a estabilidade nas relações com o poder público, protegendo, de um lado, o agente público responsável pela tomada da decisão, e, de outro, o particular que mantém vínculo com a Administração Pública.

No tocante à motivação, registre-se que nas leis orgânicas dos tribunais de contas facilmente se encontra dispositivo que consigna serem partes essenciais das decisões o relatório e o voto do relator, do qual deverão necessariamente constar as conclusões hauridas na fase de instrução, o parecer do Ministério Público e os argumentos da defesa. Isso revela que a motivação das decisões, além de já ser objeto de positivação expressa, mesmo antes das alterações promovidas na LINDB, impõe a independência entre quem instrui, acusa e julga. Essa independência, no âmbito dos processos sancionadores de controle, até por estarem as três funções concentradas num só órgão, é obrigatória para o alcance da imparcialidade, indispensável à legitimidade e à eficácia das decisões controladoras.

Assim, a imparcialidade se impõe não apenas ao julgador, mas, também, a quem fiscaliza e instrui – lançando luz nos fatos, colacionando aos autos achados de auditorias, evidências, que, após o juízo de conformação legal, serão levadas ao crivo judicante –, de modo que sem independência funcional entre quem fiscaliza e instrui e quem julga não há que se falar em imparcialidade, segurança jurídica ou devido processo legal de controle externo.

É bem verdade que os tribunais de contas do Brasil, até aqueles marcadamente conhecidos pela fragilidade estrutural e de funcionamento, mantêm preocupação com o devido processo legal. Não se conhece tribunal que não tenha positivado, em sua lei orgânica e regimento interno, tópicos processuais específicos da ampla defesa e do contraditório, por exemplo.

Isso, contudo, não supre aquilo que o novo texto da LINDB busca concretizar, eis que o devido processo legal pressupõe o direito à ampla defesa não apenas no plano da forma, da retórica procedimental, mas também no direito de o gestor de recursos públicos de ter as suas razões defensivas detidamente apreciadas por agentes públicos legalmente competentes e qualificadamente aptos ao desempenho das funções de controle externo estatuídas no artigo 71 da Constituição Federal.

Se o objetivo da Lei 13.655/2018 é garantir a eficiência da função de controle, evitando atuações equivocadas dos agentes controladores – interrompendo, injustificadamente e por erro, a execução de políticas públicas, gerando desperdício de dinheiro público –, só há como esperar que esse objetivo seja atingido com a devida observância da competência legal e aptidão para a prática dos atos, por parte dos agentes incumbidos da função de controle, o que nos leva a concluir que a permissividade de agentes públicos em desvio de função, no órgão de fiscalização e instrução, constitui transgressão ao postulado do devido processo legal, colocando em risco de nulidade as instruções processuais, expondo a risco de lesão os direitos subjetivos e fundamentais de gestores públicos, ensejando, portanto, responsabilização de quem tenha dado causa, nos termos do que dispõe o artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição.

Ao estatuir, no artigo 28 da LINDB, que o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro, não quis o legislador alcançar, tão somente, o parecerista que atua em procedimentos licitatórios ou o prefeito da cidade interiorana, mas qualquer agente público, na real e mais ampla acepção da expressão, que, frise-se, é gênero, e no qual se inclui, também, o agente controlador.

Nesse sentido, partindo-se do pressuposto de que dolo é consciência e vontade, parece-nos induvidoso, por exemplo, que poderá ser responsabilizado pessoalmente com o seu patrimônio tanto aquele agente público que age fora das atribuições legalmente previstas em lei, quanto aquele que, tendo a missão constitucional de combater essa ocorrência, consente que outro agente público assim aja, seja porque é nulo o ato lesivo ao patrimônio público eivado do de vício de competência, consoante aduz expressamente o artigo 2º da lei que regula a ação popular, seja porque da prática dele pode vir a atingir a esfera de direitos subjetivos dos gestores de recursos públicos, dando ensejo a que o agente público venha a figurar no polo passivo da ação, cuja legitimidade ativa é outorgada ao próprio cidadão, à luz do artigo 6º da sobredita lei.

Isso porque o processo que materializa a função sancionadora dos tribunais de contas é ramo do direito processual punitivo, razão pela qual a observância do devido processo legal, em sua plenitude, é medida que se impõe, sob pena de inequívoco comprometimento da regularidade procedimental, da validade processual, argumento que se extrai dos artigos 5°, incisos LIV e LV, 73 com correspondência 96, I, “a” da Constituição.

É possível afirmar que, de um lado, esse dever emerge do direito do cidadão de pedir contas de quem gere recursos públicos, previsto no artigo 15 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e, de outro, do dever de prestar contas previsto no parágrafo único do artigo 70 da Constituição.

Necessário se faz esclarecer que o ônus da prova, no âmbito do processo de controle externo, embora seja, em regra, do gestor de recursos públicos, não é exclusivamente e sempre dele. Em razão disso, o Tribunal de Contas da União, em diversas ocasiões, vem manifestando entendimento de que o ônus da prova é do gestor nos processos de contas, havendo a inversão do ônus nos processos decorrentes de fiscalizações, denúncias, representações, inspeções e auditorias.

É que, como se sabe, o processo de controle externo não se confunde com o processo administrativo: enquanto o processo administrativo tem por finalidade própria concretizar a lei, o processo de controle externo tem como fim controlar o ato emanado a partir do processo administrativo, verificando se a lei foi respeitada e em que medida. Trata-se, como reiterado em diversos precedentes do Supremo Tribunal Federal, de um processo de colorido “quase judicial”, que se encontra mais próximo do processo penal do que do processo civil, por razões óbvias, a exemplo da indisponibilidade do interesse público e da busca pela verdade real, princípios que marcam a atuação processual penal e de processos de controle externo de responsabilização, ramos do direito processual punitivo.

Isso, doravante, com o advento da Lei 13.655/2018, não deve ser mais objeto de questionamento. É que, na medida em que se reconheceu existência própria da esfera controladora, atrelando-a ao cumprimento de deveres inerentes ao ramo processual punitivo, reconheceu-se, consequencialmente, a figura do processo controlador, já denominado de “processo de controle externo” em propostas de emenda à Constituição que tramitam no Congresso Nacional.

Foi também pautado nas consequências diretas e nos reflexos que o processo de controle externo podem produzir na esfera de direitos subjetivos de terceiros, atingindo direitos fundamentais, como honra, patrimônio e liberdade, que o legislador incluiu o artigo 30 da LINDB, impondo às autoridades públicas – leia-se, aqui, os agentes controladores – o dever de atuar com vistas a aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas.

Essa segurança jurídica, contudo, não se limita à vedação à aplicação retroativa de interpretação administrativa, até porque já se encontra expressamente prevista no artigo 2º, parágrafo único, inciso XIII da Lei 9.784/1999, de aplicação subsidiária ao processo controle externo, cuja inobservância faz surgir o direito ao exercício da controlabilidade judicial dos atos emanados das instâncias controladoras.

Registre-se que os debates em torno das mudanças na LINDB demonstraram que a segurança jurídica intencionada é aquela objetivada pelo legislador constituinte originário, que, ao outorgar competências próprias aos tribunais de contas, buscou que o regular funcionamento deles pudesse refletir diretamente na regular prestação de serviços públicos considerados indispensáveis à garantia da tão almejada paz social.

Ora! A razão de existência das instituições de controle é o cumprimento da função de controle, que se materializa por meio do devido processo legal de controle externo, com início na fiscalização/instrução e término na decisão.

Assim, não parecem atender ao novo texto da LINDB, por exemplo, modelos em que órgãos de fiscalização e instrução estejam diretamente vinculados aos integrantes da função judicante, eis que isso inviabiliza que a seletividade e o planejamento anual de fiscalizações sejam pautados em matrizes de riscos, abrindo margem para interferências nas manifestações técnicas, mitigando, por via de consequência, a presunção de independência, com reflexos, portanto, na imparcialidade, tecnicidade e confiança na instituição, comprometendo, em última análise, a segurança jurídica das decisões, como já dito.

Além disso, na tentativa de cumprir o princípio do devido de processo legal de controle externo em todas as suas vertentes, alterações na forma de ingresso e composição do colegiado dos tribunais de contas buscam, a um só tempo, restabelecer o princípio da proteção da confiança do cidadão nas instituições estatais de controle e garantir a composição plural da colegialidade decisória – à semelhança do Poder Judiciário, guardadas, é claro, as devidas peculiaridades – da qual façam parte titulares das três funções finalísticas, suavizando, ainda, o sentimento generalizado de dúvida quanto à imparcialidade de uma composição que não é majoritariamente egressa das carreiras técnicas.

Dessarte, levando-se em conta que o funcionamento de todo órgão precisa se amoldar ao cumprimento da sua função fim, a regularidade de atuação dos tribunais de contas passa pela necessária correção de disfunções que, de alguma forma, possam comprometer a segurança jurídica almejada, garantindo, assim, a manutenção da legitimidade decisional.

[1] SARLET, Ingo Wolfgang. Segurança Jurídica e Estado Democrático de Direito. Diretor Acadêmico: Eduardo Arruda Alvim. Coordenador Científico: Eduardo Agustinho. Organizadores: Demetrius Nichele Macei, Rogério Cangussu Dantas Cachichi. Curitiba: Instituto Memória. Centro de Estudos da Contemporaneidade, 2017. “A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica: Dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais e proibição de retrocesso social no direito constitucional brasileiro. p. 58.

 é auditor de controle externo, advogado, professor e diretor jurídico da Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil.

 

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