Quinta-feira, 28 de março de 2024
informe o texto

Notícias | Geral

Confissões de uma sequestrada das Farc

01/07/2012 - 09:54

Salatiel Soares Correia

Estrada de San Vicente Del Caquán, Colôm­bia, 23 de fevereiro de 2002. Local e data que jamais serão esquecidos. Nesse dia e lugar, a seguinte cena transcorreria: uma camionete com cinco pessoas se­guia por uma estrada deserta. Iam um condutor, um jornalista francês, um assistente de câmara e duas mulheres.

De repente, alguns homens de aspecto rude fizeram parar a camionete e obrigaram as duas mulheres a entrarem em outra camionete, que se dirigiu rumo à imensa selva colombiana. Quem comandava a operação era um homem chamado “El Mocho César”, homem de confiança do alto comando da guerrilha que perdura há mais de meio século na Colômbia: as Forças Armadas Revolucionárias da Co­lômbia — (Farc).

Foi assim que se iniciou o se­questro da então candidata à Pre­sidência da Colômbia, Ingrid Be­tancourt e sua candidata a vice-presidente, Clara Rojas. O sequestro foi longo. Permaneceram por mais de seis anos reféns na imensa selva colombiana, isoladas de tudo, de todos, menos dos guerrilheiros e de outros 38 reféns, também sequestrados pela guerrilha.

O que se passou com as candidatas durante todo esse tempo em que estiveram sequestradas?

Foi para responder a essa indagação que Clara Rojas escreveu um livro corajoso e sincero, intitulado “Eu, Prisioneira das Farc”, (Ediouro, 208 páginas).

Adaptação ao cativeiro

Mulheres bem-nascidas, de cidade grande, cujos hábitos certamente contrastavam com os da vida na selva, onde existem árvores que chegam a ter “a altura de sete andares”, impedindo assim de se ver a luz do sol. Aliado a isso, não era nada agradável a convivência com formigas “que chegavam a medir três centímetros”, no sempre asfixiante clima da selva.

Viviam em acampamentos improvisados, num pequeno espaço, com mais 38 reféns de diferentes formações. Essas condições alimentavam sempre a ideia de fugir. Ingrid e Clara alimentaram, no início do cativeiro, a intenção da fuga. E tentaram por duas ocasiões, mas não foram bem-sucedidas. De um lado, enfrentavam o perigo de atravessar pântanos e rios cheios de crocodilos; de outro, os guerrilheiros, que, com suas velozes lanchas, sempre as alcançavam.

As fracassadas tentativas de fuga acarretaram mudanças no destino dessas duas senhoras. A primeira, foi o rompimento de uma amizade entre as duas sequestradas, que não resistiu à difícil prova de fugirem e serem recapturadas. A segunda, foi a decisão dos guerrilheiros de separá-las, após dias e dias de acorrentamento.

A difícil vida no cativeiro

Clara Rojas fala como era difícil o dia-a-dia na selva. Isola­men­to, solidão, absoluta solidão. Ademais, a radical mudança de estilo de vida; ela, que nunca tinha tempo para nada, via-se, agora, numa situação oposta, em que tinha todo o tempo do mundo e nada para fazer. Ciente disso, enxergava dois caminhos: o suicídio, ou a luta para viver. E ela, corajosamente, optou por continuar a luta pela vida.

Para lidar com isso, pediu, inicialmente, a Bíblia, que leu em dois meses. Depois, lhe deram revistas antigas, das quais lia até as propagandas. Aprendeu a jogar bridge, ouvia rádio e fazia constantemente exercícios, procurando manter-se em forma. Assim, mantinha-se sempre em atividade e evitava que a ideia de suicídio a dominasse.

A autora aponta uma série de dificuldades que tornavam cada vez mais difícil sua vida de sequestrada das Farc. O convívio sempre tenso com os outros sequestrados, “pessoas das mais diferentes formações, presas em tão reduzido espaço”. Aponta como outro grande inconveniente os constantes deslocamentos pela floresta adentro, por semanas e até meses, visando fugir de algo que não dava sossego aos guerrilheiros: os constantes voos cada vez mais rasantes dos aviões do exército colombiano à procura dos sequestrados.

Vale ressaltar que exercia a presidência da Colômbia um homem que tinha razões pessoais e políticas para combater as Farc: Álvaro Uri­be, que tivera o pai e um irmão assassinados pela guerrilha.

 src=A gestação heroica

Muito reservada e ao mesmo tempo sincera em sua narrativa, a autora fala de sua gravidez, do filho Emmanuel, e do pai da criança, um guerrilheiro. Deixa entender que se trata de alguém que, mesmo guerrilheiro, compreendeu o sofrimento que a organização vinha lhe impondo. “Tive um filho e creio que esse assunto faz parte da minha vida privada.” Ponto final. Não tocou mais no assunto.

Falou pouco do pai de seu filho, mas muito do enorme desejo de tê-lo, mesmo naquele contexto de total falta de recursos médicos, contando apenas com a assistência de uma guerrilheira e um enfermeiro sem experiência. Foi assim que veio ao mundo aquele que passou a ser a razão de sua existência. Po­rém, pouco mais tarde, viu-se forçada a se separar dele por duas razões: os constantes deslocamentos pela selva colombiana, que a impediam de levar o recém-nascido consigo, e o fato de o bebê ter contraído leishmaniose.

Da solidariedade à indiferença

Ser humano, ser humano! Quem lhe conhece as virtudes, os interesses? Quem lhe adivinha as reações nos momentos de tensão? Quem sabe o que há de maldade e de bondade em suas atitudes nos momentos em que imperam a desesperança e as privações pessoais? Num ambiente assim, do fundo de nossa alma, surge o nosso eu verdadeiro, escondido nos subterrâneos de nosso ser.

Reintegrada aos outros sequestrados, Clara Rojas pôde ter essa experiência e nos relatar. Relatar a indiferença de Ingrid Bettancourt, quando soube da gravidez de sua companheira de chapa. “Bem-vinda ao clube!”, disse ela com felina ironia, desconsiderando por completo a fragilidade em que se encontrava e a esperança de apoio e solidariedade daquela que, naquele momento, era-lhe mais próxima. Ingrid demonstrou frieza e distanciamento. Não a apoiou em momento algum, selando de vez o rompimento de uma relação duradoura.

A solidariedade a Clara Rojas manifestou-se de onde ela menos esperava: dos guerrilheiros que, apesar das imensas dificuldades, permitiram-lhe não somente ter o filho, mas, posteriormente, o en­tregaram a uma instituição colombiana habilitada a cuidar de crianças carentes.

O fim do sequestro e a arte do perdão

Durante seis longos anos, viveu, aqui mesmo na Terra, seu inferno a então candidata à vice-Presidência da Colômbia, Clara Rojas. Veio a termo, enfim, seu longo calvário, numa ação política articulada pelo presidente da Venezuela, Hugo Chávez, aliado aos esforços do governo da Co­lômbia, então sob o comando de Álvaro Uribe, notório adversário de Chávez, mas a ele aliado no objetivo comum de libertar Clara Rojas e Ingrid Bettancourt.

A partir daí, desencadeou-se uma avalanche de emoções confessas, de maneira comovente e sincera, por parte da ex-candidata à vice-Presidência da Colômbia. O reencontro com a mãe, com o irmão Ivan, com a sobrinha já crescida num aeroporto da Ve­ne­zuela; a emoção de tomar um banho em um banheiro repleto de xampus, que ela fez questão de experimentar todos; a emoção de reencontrar o filho Emmanuel, que não via há três anos; a emoção, enfim, de reencontrar a civilização de que ela se apartara havia seis anos.

Mas, certamente, o maior desafio que Clara Rojas impôs a si mesma foi o contínuo exercício da arte do perdão. Com admirável sinceridade, ela admite que, para seguir adiante e voltar a ter uma vida plena, era preciso perdoar. “Necessito perdoar de coração a todos que me causaram tanto dano.” E acrescenta: “Não quero seguir carregando esse peso e essa dor, menos ainda a desejo como herança a Emmanuel e às futuras gerações que ele representa”.

Encerro esta resenha com o testemunho do que presenciei na minha estada na Colômbia, não só em conversas com formadores de opinião, mas observando o melhor termômetro para se constatar a veracidade do que diz uma pessoa pública como Clara Rojas: a alma do povo.
 

 

Informe seu email e receba notícias!

Sitevip Internet