“Nesta edição do Relatório Violência contra os Povos Indígenas do Brasil, expressamos nosso desejo e reforçamos o compromisso para que a Justiça seja feita para todos os povos indígenas, e que ninguém mais derrame seu sangue pelo que é de direito. Kiwxi Presente!!!”. Fonte: Relatório. Violência contra os Povos Indígenas no Brasil DADOS DE 2017, publicado em Fevereiro de 2018. CIMI – Conselho Indigenista Missionário – CNBB.
A história dos povos indígenas no Brasil, desde o “descobrimento” até os dias atuais, tem sido uma luta constante contra um processo intenso e contínuo de violência, assassinatos de suas lideranças, massacres, destruição de suas culturas, invasão de seus territórios, preconceito, discriminação, exclusão, enfim, uma luta árdua contra um verdadeiro genocício a que foram e continuam sendo submetidos, pela ganância dos donos do capital e também pela omissão e conivência de nossos governantes, por mais de 520 anos. Quando os primeiros colonizadores aportaram no que hoje é o território brasileiro, segundo diversos estudos e pesquisas, a população indígena, representada por mais de mil etnias, povos distintos, com suas culturas, costumes, linguagens e territórios era de aproximadamente 8 milhões de pessoas ou segundo algumas estimativas poderia chegar a 10 milhões de pessoas, dos quais em torno de cinco milhões viviam na Amazônia, incluindo o que posteriormente passou a ser a área de colonização espanhola e atualmente o total da população indígena é de apenas 1,7 milhões de pessoas, conforme dados do Censo do IBGE de 2022, o que representa apenas 0,8% do total da população brasileira.
Desde os períodos do Brasil Colônia, Império e República, os povos indígenas foram e continuam sendo tratados tanto pelos governantes quanto pela população não indígena como um grupo humano que atrapalhava o progresso e o “avanço” da civilização rumo ao interior do Brasil.
O preconceito, a discriminação, a violência, incluindo inúmeros massacres sempre foram as formas de dominar e exterminar aqueles povos. De acordo com artigo de Maria Fernanda Garcia, intitulado “Massacrada, população indígena representa menos de 0,5% do país”, datado de 24/04/2017, publicado no Observatório do Terceiro Setor, “Os índios que sobreviveram foram escravizados ou catequizados. As doenças trazidas pelo homem branco foram outra arma mortal. Sem imunidade para os vírus e bactérias que vieram junto com os colonizadores, os índios não resistiram às doenças até aquele momento desconhecidas pelos nativos. Durante a ditadura militar, mais de oito mil indígenas foram mortos por estarem no caminho das estradas idealizadas pelo Programa de Integração Nacional.
Os Waimiri-Atroari perderam 75% de sua população em menos de quinze anos. Os Panarás perderam 84%. O número de Parakanãs no Pará caiu pela metade. Sobraram apenas 10% dos Yanomamis do rio Ajarani. Até hoje indígenas são assassinados. Entre 2003 e 2015, 742 deles, principalmente lideranças, foram assassinados. Isso representa uma média de 57 por ano, ou um homicídio a cada seis dias”.
Ainda de acordo com os estudos de Alzira Alves de Abreu, “A catequese missionária não conseguira converter os índios, impedir as invasões de seus territórios, nem impedir o extermínio de inúmeras tribos. Muitas desapareceram pelo contágio de doenças transmitidas pelos invasores, ou pela matança promovida por matadores profissionais, os chamados bugreiros, que eram contratados pelos especuladores de terras. A situação se agravou quando da abertura da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, que atravessava o território dos índios Kaingang, no estado de São Paulo, desencadeando uma disputa armada entre esses índios e os trabalhadores da estrada de ferro. O mesmo ocorreu em Minas Gerais e no Espírito Santo, quando os índios Botocudos reagiram à invasão de suas terras por colonos.
Também no sul do Brasil, em Santa Catarina e Paraná houve lutas entre índios e colonos. Em 1908, durante o XVI Congresso de Americanistas, em Viena, Áustria, houve denúncias de que o Brasil estava massacrando os índios. Essa denúncia levou o governo federal a buscar uma ação de proteção leiga e privativa do Estado às populações indígenas.”
Foi neste contexto histórico que surgiu o Serviço de Proteção dos Índios, instituído pelo Governo Federal através do Decreto 8.072, de 20 de Junho de 1910, subordinado ao Ministério da Agricultura e, posteriormente, ao Ministério da Justiça, tendo sido extinto em 1967, durante o Governo Militar/ditadura, quando da criação da FUNAI.
Em 1972 foi criado o CIMI Conselho Indigenista Missionário, organismo da Igreja Católica, vinculado `a CNBB, com o objetivo de lutar na defesa dos povos indígenas, garantindo a diversidade cultural destes, fortalecer a autonomia desses povos e o apoio a projetos alternativos, pluriétnicos, populares e democráticos, contribuir para a formação e fortalecimento das lideranças e organizações representativas de tais povos.
Em 13 de Setembro de 2007, na 107ª Sessão Plenária da Assembléia Geral da ONU, foi aprovada a Declaração das Nações Unidas sobre os DIREITOS DOS POVOS INDÍGENAS, subscrita pela quase totalidade dos países, inclusive o Brasil.
Em um de seus considerandos a citada Declaração menciona que “Preocupada com o fato de os povos indígenas terem sofrido injustiças históricas como resultado, entre outras coisas, da colonização e da subtração de suas terras, territórios e recursos, o que lhes tem impedido de exercer, em especial, seu direito ao desenvolvimento, em conformidade com suas próprias necessidades e interesses”.
Em um de seus artigos a Declaração estabelece que “Os indígenas têm direito, a título coletivo ou individual, ao pleno desfrute de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais reconhecidos pela Carta das Nações Unidas, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o direito internacional dos direitos humanos” e também que “Os povos indígenas não serão removidos à força de suas terras ou territórios. Nenhum traslado se realizará sem o consentimento livre, prévio e informado dos povos indígenas interessados e sem um acordo prévio sobre uma indenização justa e eqüitativa e, sempre que possível, com a opção do regresso.” E, apenas para mencionar mais um desses inúmeros direitos que , conforme o artigo 26º “1. Os povos indígenas têm direito às terras, territórios e recursos que possuem e ocupam tradicionalmente ou que tenham de outra forma utilizado ou adquirido. 2. Os povos indígenas têm o direito de possuir, utilizar, desenvolver e controlar as terras, territórios e recursos que possuem em razão da propriedade tradicional ou de outra forma tradicional de ocupação ou de utilização, assim como aqueles que de outra forma tenham adquirido. 3. Os Estados assegurarão reconhecimento e proteção jurídicos a essas terras, territórios e recursos. Tal reconhecimento respeitará adequadamente os costumes, as tradições e os regimes de posse da terra dos povos indígenas a que se refiram”.
Assim, a conquista, manutenção, a garantia e a efetivação desses direitos e dos demais reconhecidos universalmente é que alimentam a luta permanente dos povos indígenas no Brasil e nos demais países.
Em 2010 o CIMI apresentou um relatório que serviu de alerta quanto à gravidade da violência em curso no Brasil contra os povos indígenas, da mesma forma que em 2018, denunciando tanto a invasão de seus territórios por garimpeiros, madeireiros e grileiros, com sérios danos tanto ao meio ambiente quanto `a saúde e a vida de diversos povos, em todas as regiões, principalmente na Amazônia.
Um momento marcante na história desta luta e da resistência dos povos indígenas foi a criação da APIB – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, no Acampamento Terra Livre (ATL), representando a capacidade de mobilização dos povos indígenas, para tornar visível a real situação de violência a que tais povos estavam e continuam sendo submetidos, em total desrespeito aos direitos humanos em geral, quanto aos direitos dos povos indígenas já então consagrados em tratados internacionais, dos quais o Brasil faz parte e como forma de reivindicar que o Estado Brasileiro promova, realmente, a proteção e a garantia de tais direitos em sua plenitude.
Segundo tem sido enfatizado desde então “A APIB é uma instância de referência nacional do movimento indígena do Brasil, criada de baixo pra cima. Ela aglutina nossas organizações regionais indígenas e nasceu com o propósito de fortalecer a união de nossos povos, a articulação entre as diferentes regiões e organizações indígenas do país, além de mobilizar os povos e organizações indígenas contra as ameaças e agressões aos direitos indígenas”
Foi neste contexto histórico, entre muitas contradições políticas, econômicas, ideológicas que em 12 de junho de 2008, após o Congresso Nacional aprovar, o Presidente Lula, em seu segundo mandato, sancionou a Lei 11.696, que criou o DIA NACIONAL DE LUTA DOS POVOS INDÍGENAS, como reconhecimento de que os povos indígenas também fazem jus tanto `a proteção do Estado, não de forma paternalista e assistencialista apenas, mas, fundamentalmente, como forma de reconhecimento do direito `a diversidade cultural , étnica e linguística desses povos, que devem ser respeitados, como seres humanos que são, com dignidade intrínseca.
A maior luta dos povos indígenas na atualidade, além do reconhecimento ormal de seus direitos é a garantia de seus territórios, que deve ser atingida através da demarcação de tais territórios, nos termos da Constituição, consoante ação recentemente julgada pelo Supremo Tribunal Federal em desfavor da tese do Marco Temporal.
Apesar de o Supremo Tribunal Federal já ter julgado a citada ação, rejeitando a tese do Marco Temporal, garantindo os direitos indígenas, mesmo assim, a Bancada Ruralista, com apoio de aliados da mesma no Congresso Nacional, em retaliação `a decisão do STF, aprovou um projeto de Lei, que foi vetado parcialmente neste terceiro Governo Lula, criando um imbróglio jurídico. Tudo leva a crer que o STF tornará a derrubar tal tese contida nesta Lei .
Em meio a tudo isso, no final do Governo Bolsonaro, que promoveu um verdadeiro desmonte das políticas ambientais, indigenistas e sociais, surgiram inúmeras denúncias da ação ilegal de garimpeiros, grileiros e madereiros ilegais na Amazônia, dando origem novamente a um verdadeiro genocídio afetando o povo Ianomami, com repercussão extremamente negativa para a imagem do Brasil no exterior.
Coube ao Governo Lula, assumindo compromisso público de campanha, no início de seu terceiro mandato como Presidente da República, criar o Ministério dos Povos Indígenas e nomear como Ministra uma representante legítima dos referidos povos e também nomear para a direção da FUNAI, que ao longo de sua existência foi praticamente dirigida por militares da ativa ou da reserva, também uma mulher indígena.
Além disso, a UNESCO criou uma ação para valorizar as línguas indígenas, a Década das Línguas Indígenas, de 2022 a 2032, preocupada com a extinção constante dessas. Ações como essa tem conscientizado pessoas de fora do mundo acadêmico sobre a importância da valorização dos saberes e identidades que se perdem juntamente com o léxico de línguas indígenas.
É neste contexto de uma verdadeira guerra, não apenas de “narrativas” como alguns a definem, mas sim, de uma luta em diversas frentes, incluindo a política, a jurídica e também em foros internacionais que os povos indígenas brasileiros, irmanados a outros povos indígenas de diversos países, continuam lutando e resistindo , corajosamente, a todas as formas de desrespeito e violência contra os seus direitos. A luta dos povos indígenas é, sem sombra de dúvida, UMA LUTA PELA VIDA.
Assim, ao celebrarmos o DIA NACIONAL DE LUTA DOS POVOS INDÍGENAS, devemos reconhecer que esta luta não é apenas dos referidos povos, mas de todas as pessoas e organizações governamentais e não governamentais que defendem a vida, a diversidade cultural e étnica no Brasil, a democracia e um país sob o primado da justiça social, da justiça ambiental e da Justiça intergeracional.
Só existe democracia, estado democrático de direito, espírito republicano, solidariedade, fraternidade quando o Bem comum e a inclusão de todas as pessoas e grupos nacionais forem reconhecidos e respeitados em sua dignidade como seres humanos, inclusive os povos indígenas.
Juacy da Silva, professor fundador, titular e aposentado da Universidade Federal de Mato Grosso, Sociólogo, mestre em sociologia, ambientalista e articulador da PEI Pastoral da Ecologia Integral. Email profjuacy@yahoo.com.br
Priscila Alyne Sumaio Soares, graduada em Letras, Especialista em Língua Brasileira de Sinais (Libras) e Doutora em Linguística e Língua Portuguesa pela UNESP/FCLAr. Pesquisou a língua Juruna e a língua Terena de Sinais. Atualmente é professora do Curso de Letras Libras na UFMT, em Cuiabá. E-mail: prisumaio@gmail.com