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Políticos resgataram bancos. Agora, terão de socorrer gente

25/03/2020 - 16:04 | Atualizada em 25/03/2020 - 16:08

JAMIL CHADE, no El País

O que está em jogo não é o sistema capitalista, mas a vida de milhares de pessoas. Porém, a pandemia de coronavírus desembarca em um mundo que optou por estar despreparado

Quando o Lehman Brothers quebrou em setembro de 2008, o que se viu nos dias seguintes foi um esforço inédito para colocar em volta de uma Aquela instituição supostamente sólida era a ponta de um iceberg de um sistema corroído. Meses depois, governos de todo o mundo tinham destinado 9 trilhões de dólares para salvar seus bancos e casinos, diante da maior crise do capitalismo em 70 anos.Contas públicas quebraram, governos mentiram e políticos caíram, mas o sistema foi preservado.

Uma década depois, é o estado uma vez mais que volta a ser convocado para assumir o papel central de salvador. Mas, agora, não bastará reuniões com bancos e salvar o mercado financeiro. Não falta liquidez nos bancos. O resgate terá de ser ao povo, o que exige uma transformação importante na lógica de governos que, nos últimos anos, desmontaram modelos de proteção social, reduziram benefícios e acusaram milhões de “vagabundagem” por se apoiar no estado.

No Reino Unido, a crise chega em um momento complicado para o setor de saúde, alvo de sucessivos cortes nos últimos anos. Resultado: o país tem hoje uma das menores taxas de leitos por habitantes entre os países ricos e inferior mesmo à China. Em tantos outros lugares, os efeitos do resgate de 2008 e 2009 ainda eram sentidos e traduzidos em cortes de seguro-desemprego e aumento da idade mínima de aposentadoria.

Agora, justamente quanto o sistema foi desmontado em grande parte, uma pandemia de coronavírus desembarca em um mundo que optou por estar despreparado. Estimativas da Organização Internacional do Trabalho (OIT) apontam que 25 milhões de pessoas podem perder seus empregos por conta da atual crise. E fica a pergunta: qual rede social vai preservar a dignidade dessas pessoas?

Alguns governos já se deram conta que o apoio terá de ir diretamente à população. Na Austrália, o plano anunciado pelo primeiro-ministro Scott Morrison previa um cheque de 750 dólares australianos para os mais vulneráveis. Bancos foram instruídos a ampliar os prazos de pagamentos de dívidas de pequenas e médias empresas, enquanto isenções fiscais entrarão em vigor.

Pequenas empresas também poderão pegar emprestado recursos, colocando o governo como fiador. Seguro-desemprego foi dobrado, enquanto outras medidas continuam a ser avaliadas.

Pela Europa, o caminho é semelhante. Na Alemanha, o governo passou a dividir com empresas os gastos por manter milhões de pessoas empregadas. Na Irlanda, empresas poderão pagar seus empregados e receber uma compensação de até 203 euros por semana por parte do governo. Para aqueles contaminados por coronavírus, o estado reembolsará as empresas em 305 euros.

Mas isso não vai ser suficiente e a crise exigirá de governos uma ação de uma escala ainda maior para resgatar seus cidadãos. No total, os trabalhadores podem perder uma renda de 3,4 trilhões de dólares, afirma a OIT. O risco é de que a pandemia crie uma legião de novos pobres. Para os próximos dias, a ONU e entidades internacionais vão se unir para lançar uma operação humanitária global, na esperança de sair ao resgate de milhões de pessoas que, ainda que sanas, passarão a ser ameaçadas de desnutrição ou outras doenças diante da falta de recursos. Especialmente preocupante é a situação de milhões de pessoas que, apesar de trabalhar, já vivem à beira da miséria.

“Ao contrário da crise financeira de 2008, injetar capital apenas no setor financeiro não é a resposta. Esta não é uma crise bancária ―e, na verdade, os bancos devem ser parte da solução”, disse o secretário-geral da ONU, Antônio Guterres.

“E não é um choque comum na oferta e na procura; é um choque para a sociedade como um todo. A liquidez do sistema financeiro deve ser garantida, e os bancos devem usar sua resiliência para apoiar seus clientes”, afirmou. “Mas não esqueçamos que isto é essencialmente uma crise humana”, alertou.

“Acima de tudo, precisamos nos concentrar nas pessoas ―trabalhadores com salários baixos, pequenas e médias empresas e os mais vulneráveis. E isso significa apoio salarial, seguros, proteção social, prevenção de falências e perda de empregos”, defendeu.

“A recuperação não deve vir nas costas dos mais pobres —e nós não podemos criar uma legião de novos pobres”, alertou. “Precisamos colocar os recursos diretamente nas mãos das pessoas”, completou.

Desta vez, o que está em jogo não é o sistema capitalista. Mas a vida de milhares de pessoas. De uma forma irônica, a pandemia volta a dar cara ao estado. Ela testa a relação de confiança entre autoridades e cidadãos, justamente num momento de uma fratura profunda nesse pacto social.

Não serão banqueiros ou mega-empresários que salvarão as comunidades com sua filantropia. Nem muito menos um patriotismo oco de redes sociais com a repetição de palavras como “mito”.

Não serão caças ou submarinos, nem o porte de armas, que trarão um sentimento de segurança. Mas um sistema de saúde robusto. Um estado resiliente e que tenha o cidadão como prioridade.

Nos últimos dias, diante da certeza de uma recessão no mundo, a OCDE fala na necessidade de se criar um novo Plano Marshall. Mas, desta vez, o que está em jogo não é a sobrevivência de uma elite no poder financeiro-político. Mas um resgate que impeça que a pandemia se transforme em miséria para aqueles que consigam sobreviver.

Jamil Chade é correspondente na Europa desde 2000, mestre em relações internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais de Genebra e autor do romance O Caminho de Abraão (Planeta) e outros cinco livros.

 

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