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Hitlerismo aproximou-se mais da esquerda do que da direita

14/04/2019 - 06:50 | Atualizada em 14/04/2019 - 06:54

Irapuan Costa Junior

O nazismo é de esquerda? A discussão aberta pelo chanceler Ernesto Araújo, embora puramente acadêmica, teve ao menos uma vantagem: deixou histérica a esquerda tupiniquim, acostumada, nos últimos 30 anos, a falar sozinha e não dar voz a contestadores, na imprensa e nas universidades.

A colocação abala uma das vantagens levadas pelo marxismo na Segunda Guerra: enquanto o nazismo se tornava uma execração mundial, condenado nos processos do Tribunal de Nuremberg, o comunismo, tão nefasto quanto, saíia ileso, ocupava metade da Europa e a China, tentava se espalhar pela África e América Latina. Não conseguiu, mas também não desapareceu, e ainda perturba e faz sofrer muita gente, não só na Venezuela, Coreia do Norte ou em Cuba, mas por toda a parte, aqui inclusive.

A afirmação feita pelo chanceler, de que o nazismo é de esquerda, e que foi apoiada pelo presidente da República, Jair Bolsonaro, mereceu pronta (embora superficial) refutação por parte da esquerda. Ela merece alguns considerandos, até porque nossos esquerdistas pouco leem, e quando escrevem, apenas apelam para seus chavões, e os leitores merecem melhores esclarecimentos.

A questão, abordada do ponto de vista teórico, não é simples.

Esquerda e direita não são conceitos monocromáticos, uma vez que comportam, um e outro, várias nuances. De uma maneira geral, ser de esquerda comporta a crença no materialismo, na estatização dos fatores de produção (recursos naturais, força de trabalho, máquinas e equipamentos), no internacionalismo, na predominância do coletivo sobre o individual e no igualitarismo, principalmente.

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Ser de direita implica em aceitar como verdades a crença religiosa, o capitalismo (ou liberdade econômica), o Estado mínimo, os direitos individuais, a hierarquia de valores pessoais.

A esquerda tem seus teóricos em Marx, Engels e Lênin. O nazismo teve um único teórico: Adolf Hitler. Outros nazistas, como Alfred Rosenberg (autor do livro “O Mito do Século Vinte”) se autoproclamaram teóricos nazis, mas foram desautorizados pelo próprio Hitler.

O Führer deixou, como registros de seu pensamento, um livro escrito (“Minha Luta”), outro com uma coletânea de seus discursos de 1922 a 1941 (“Minha Nova Ordem”), e outro, ainda, com os registros de suas conversas à mesa, entre 1941 e 1944 (“Conversações sobre a Guerra e a Paz”).

Pelas ideias expressas nesses documentos e pela prática nazista, pode-se concluir ser o nazismo de esquerda ou de direita?

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O nazismo nunca foi uma doutrina materialista, antirreligiosa. Hitler, apesar de seu anticlericalismo, acreditava num Criador, e se achava imbuído de uma missão divina. Mas acreditava, por outro lado, num Estado forte economicamente e era anticapitalista (o capital era ferramenta manipulada pelo judaísmo internacional, dizia). Se tolerou e até conviveu com os grandes industriais alemães (Krupp, Messerschmitt, I.G. Farben e outros) foi por necessitar deles para rearmar rapidamente a Alemanha após a derrota na Primeira Guerra. Finda a guerra, na Alemanha nazista, as empresas privadas seriam apenas as empresas familiares, e as grandes indústrias seriam estatais (as únicas que poderiam emitir ações para venda ao público), previa Hitler.

O Estado deveria pairar acima das atividades econômicas e a orientação seria do Partido Nazista (partido único, como no comunismo). Hitler não acreditava em qualquer tipo de internacionalismo. A Alemanha nazista seria super-nacionalista. E racista. Mas aceitava um tipo de igualitarismo militar. Pensava em uma nação onde a obediência seria um dos valores máximos do cidadão. E a obediência seria devida ao Estado, encarnado na cúpula do Partido. A burguesia, no seu entender, era algo desprezível, sinônimo de acomodação e fraqueza. Gostava da burguesia tanto quanto a aprecia a indefectível Marilena Chaui.

Em “Minha Nova Ordem” contam-se às dezenas as diatribes de Hitler contra os burgueses. Num discurso pronunciado em Munique, numa das grandes mobilizações partidárias antes da subida ao poder (em 1922), Hitler deixa bem claro seu desprezo tanto pela esquerda (que julgava instrumento bolchevista de apropriação da ideia socialista) como pela direita (a democracia é débil e é judaica, dizia).

Hitler julgava-se arauto de um novo movimento de supremacia alemã, nacionalista e racista, diferente de todos os antecessores, mas socialista. Por outro lado, a concepção hitlerista do sindicalismo (defendida no livro “Minha Luta”) era muito próxima daquela defendida por Trotski, e (após a Nova Política Econômica leninista) também defendida por Stálin: sindicato nacional dirigido pelo partido.

Seria o nazismo de esquerda, como quer nosso chanceler? Difícil afirmar, categoricamente.

Pelo visto, o hitlerismo aproximou-se bem mais da esquerda do que da direita. Hitler não era um ignorante, tanto que conseguiu empolgar uma das nações mais cultas do mundo de então. Até os genocidas podem ser inteligentes. E há paralelos entre o sistema vivido pela Alemanha nazista e pelo que hoje vive a China socialista. A Alemanha só poderia se reerguer dos escombros da Primeira Guerra Mundial e se tornar potência militar se contasse com seus industriais e deixasse livre o sistema econômico capitalista. No futuro as coisas correriam de maneira diferente, se Hitler vencesse a guerra. A China hoje só consegue se desenvolver adotando um sistema híbrido onde na economia são livres a iniciativa e o capital enquanto na política há um Estado socialista forte que tudo controla com mão de ferro. E que está dando certo, ao menos por enquanto.

Vale ler o livro “Os Ditadores — A Rússia de Stálin e a Alemanha de Hitler” (José Olympio, 840 páginas, tradução de Marcos Santarrita), do historiador britânico Richard Overy. A leitura sugere “parentesco” e, claro, diferenças entre ambos. Stálin, por exemplo, era mais cruel com seus generais do que Hitler. Mas os dois totalitarismos são, singularidades à parte, “irmãos”.

   
 

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