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Julgamento de Jesus Cristo representa indecisão judicial e opinião pública

01/04/2018 - 08:03 | Atualizada em 01/04/2018 - 08:08

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Há excertos aliciantes no Novo Testamento e no Evangelho Apócrifo de Nicodemos que predicam perplexidade e indecisão nesse personagem sedicioso que teria sido Pilatos[1]. Pilatos é perturbador. Pode-se, observando-se Pilatos, explorar contornos políticos das decisões jurídicas.

A partir do julgamento de Jesus Cristo pode-se também problematizar o papel das várias facções e opiniões políticas no contexto dos grandes debates judiciais. Dependendo do ponto de vista seguido esse importante julgamento pode exemplificar a pressão da opinião pública junto aos magistrados.

No limite, pode-se sustentar que o Direito é, na essência, política. Ainda que se explore um julgamento que fundamenta uma tradição teológica, não segue um ensaio de teologia, ou de religião ou de discussão de tema devoto com intenção confessional. Não sou teólogo e não tenho competência para falar de teologia. Esforço-me, apenas, para explorar assunto de conhecimento e de interesse generalizado, com o objetivo de ilustrar tema central da filosofia do direito e da ciência política.

Trato do julgamento de Jesus Cristo como um referencial literário para uma digressão em torno de problemas universais. Preocupa a força da opinião pública na construção das decisões judiciais. Nas Escrituras há possibilidades de diversas e legítimas abordagens, que transitam de ensinamentos morais a problemas recorrentes da experiência humana[2]. Bem entendido.

As fontes desse importantíssimo julgamento estão nos evangelhos sinópticos; nesse sentido, pode-se consultar Mateus (26, 27), Marcos (14, 15) e Lucas (22, 23). Há também, ainda que com variação de pormenor, a explicitação do procedimento em João (13, 18, 19). O Evangelho apócrifo de Nicodemos também trata do assunto, com muita amplitude.

São relatos fascinantes, que ocorrem no tempo da Palestina, então dominada pelo romanos, cujo imperador era Tibério César. O governador romano na região era Pilatos, sujeito indeciso e perturbado, e sempre advertido pela enigmática esposa, Cláudia. Não foi por falta de aviso de Cláudia que Pilatos carrega pela eternidade o peso de tão temerária sentença. O governador da Galileia, que fazia parte da Palestina, era Herodes Antipas. Um fortíssimo nacionalismo judeu os colocava contra a dominação romana. É circunstância que pode ter pressionado Judas, o traidor.

A fala comum era o grego (koiné). O latim era a língua dos romanos e o aramaico e o hebraico eram também falados na Palestina. Os judeus praticavam a religião do Antigo Testamento, ainda que houvesse conflitos, por exemplo, entre fariseus e saduceus. Os fariseus pregavam uma pureza ritual e acreditavam na vida após a morte. Entre eles havia um grupo mais radical, os zelotes. Ambos eram de camadas intermediárias da população.

Os saduceus eram economicamente mais portentosos, somente se fiavam na palavra escrita e não acreditavam na vida após a morte. Os essênios se retiravam para regiões mais desérticas e viviam separadamente. Os romanos praticavam religião politeísta derivada da religião dos gregos. Vivia-se em um ambiente de cultura helenística. Tudo bem resumidamente.

Afasto-me de qualquer discussão religiosa, por incompetência, e fio-me, com intenções literárias, nos relatos canônicos atribuídos a João e nos relatos não canônicos atribuídos a Nicodemos. Nesse último texto é realçada a questão da competência para julgamento do acusado. Enfatizam-se também as dúvidas de Pilatos.

Assustado, Pilatos revelou aos judeus os sonhos de sua esposa, em favor do réu, ao que se respondeu que o réu era um feiticeiro, a ponto de enviar visões à esposa de Pilatos. Depois de conversar com o acusado, Pilatos, indignado, declinou competência: o implicado deveria ser julgado de acordo com a lei dos judeus. Nicodemos relata um segundo diálogo entre Jesus e Pilatos que, mais uma vez, se recusou a proferir sentença condenatória. Chamou os anciãos e os sacerdotes e discretamente pediu para que desistissem da condenação. Não havia nada que a justificasse. Insistiram pela crucificação. Pilatos, a seguirmos Nicodemos, perseverou que o acusado não merecia ser crucificado; mas não sustentou a intenção.

Em João, relato mais conhecido, Jesus adiantou que um dos discípulos o trairia. Depois de receber um pedaço de pão, Judas deixou o local onde cearam. Jesus afirmou que Pedro o negaria por três vezes. Judas voltou com os guardas. O denunciado foi conduzido a Anás, sogro de Caifás, sumo sacerdote, que interrogou o acusado. Anás o enviou a Caifás.

Jesus foi depois conduzido a Pilatos, que o interrogou. O interrogado respondeu perguntando se a questão (“és rei dos judeus?”) vinha de Pilatos ou se outros a teriam formulado. O acusado observou que seu reino não era o desse mundo; afirmou ter a verdade, em face do que Pilatos questionou o que era a verdade. Pilatos determinou que Jesus fosse açoitado. Depois da insistência da multidão — e aqui o problema — Pilatos decidiu-se pela crucificação.

Pilatos determinou que no topo da cruz fosse feita a inscrição “Jesus de Nazaré Rei dos Judeus”, em três línguas: latim, grego e hebraico. Os sacerdotes pediram que Pilatos alterasse a inscrição para: “Ele disse: Sou o Rei dos Judeus”. Pilatos respondeu: “O que escrevi, escrevi!” Estava prescrita qualquer forma de revogação da indecisão, os embargos de declaração não prosperaram.

Um magistrado italiano (Zagrebelsky) explorou o tema da pressão popular sobre os julgadores, com base na consulta que Pilatos formulou aos que compareceram ao julgamento de Jesus[3]. A decisão tomada por Pilatos, à luz dessa investigação, não poderia ser pior. Acrescento que a opinião foi parcial, dado que os textos permitem que se admita que os amigos do acusado não opinaram. Modernamente, eu diria se tratar de uma opinião publicada, o que não se confunde com opinião pública.

Outro estudioso italiano (Agamben), com base também no julgamento de Jesus, afirmou que quando um processo político tem início o julgamento já foi feito[4]; nesse caso, “o juiz pode apenas entregar o acusado ao carrasco, não pode julgá-lo”[5]. Nesses processos, já pautados por interesses políticos, o fim é o mesmo: “o indeciso Pilatos e o decidido Jesus não tem nenhuma decisão a tomar”[6].

Em termos universais, e com base nesses dois autores italianos, Zagrebelsky e Agamben, pode-se discutir se julgadores indecisos e réus muito decididos apenas ornamentam e confirmam a narrativa daqueles que ditam a história.

 

 

[1] Do ponto de vista histórico, jurídico e político, há vários textos que tratam do assunto. Cohn, Haim, O Julgamento e a Morte de Jesus, Rio de Janeiro: Imago, 1994. Foucault, Michel, A Verdade e as Formas Jurídicas, Rio de Janeiro: PUC, 1996. Kautsky, Karl, A Origem do Cristianismo, São Paulo: Civilização Brasileira, 2010. Zagrebelsky, Gustavo, A Crucificação e a Democracia, São Paulo: Saraiva, 2012. Saramago, José, O Evangelho segundo Jesus Cristo, São Paulo: Companhia das Letras, 2005. Agamben, Giorgio, Pilatos e Jesus, São Paulo: Boitempo, 2014.

[2] Cf. Zagrebelsky, Gustavo, cit., p. 39.

[3] Zagrebelsky, Gustavo, cit.

[4] Cf.Agamben, Giorgio, Pilatos e Jesus, cit., p. 70.

[5] Agamben, Giorgio, Pilatos e Jesus, cit., loc. cit.

[6] Agamben, Giorgio, Pilatos e Jesus, cit., p. 76.

A é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela USP e doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Tem MBA pela FGV-ESAF e pós-doutorados pela Universidade de Boston (Direito Comparado), pela UnB (Teoria Literária) e pela PUC-RS (Direito Constitucional). Professor e pesquisador visitante na Universidade da Califórnia (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

 

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