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Membro do Ministério Público não pode aviltar e humilhar acusado

14/03/2018 - 08:05 | Atualizada em 14/03/2018 - 08:22

Roberto Lauria

A dissimulação, o embuste e a mitomania. A personalidade sórdida, calculista, mitômana, desviada e incontrita. Poderia ser o roteiro de uma de novela mexicana com seus personagens cartesianamente rotulados, mas — pasmem — a adjetivação verborrágica emanou de um órgão do Ministério Público, nos memoriais finais de um processo criminal instaurado para apurar delitos contra a ordem tributária, na Comarca de Belém (PA).

Assim, sob o pretexto de reforçar a tese acusatória, imputou ainda ao acusado características como: “Personalidade peçonhenta, dissimulada, antiética, desleal, embusteira, incontrita e pérfida, própria de alguém sem escrúpulos nem o mínimo de resipiscencia pelo crime perpetrado ter personalidade mitômana, sórdida, calculista e dissimulada, tendo negado a pratica do crime fiscal”.

O incansável rosário de ofensas, além de macular a civilidade e a assepsia gramatical que se espera de petitórios jurídicos, já seria censurável se emanado de uma parte qualquer. Advindo de um membro do Ministério Público, com nobre função constitucionalmente delineada, chega a ser desolador.

A desrespeitosa contundência de adjetivação, onde deveria haver imputações objetivas, é inaceitável em um processo penal com respeito à dignidade da pessoa humana.

A argumentação elencada na causa de pedir que achincalhe o réu é conduta moralmente censurável e processualmente inadmissível, que deve gerar o repúdio do Judiciário e ensejar responsabilidade correcional, pois flagrantemente violam os limites de proteção da pessoa do processado.

Nunca é demais lembrar que réu res sacra. O Estado deve respeito à pessoa do acusado, podendo a ele imputar fatos e por eles pedir a prestação jurisdicional, sempre preservado o homem, que não pode ser aviltado, denegrido, achincalhado, humilhado, sob pena de violação do princípio da dignidade humana.

Na lição precisa do ministro Alexandre de Moraes, “a dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente a pessoa que se manifesta singularmente na auto determinação consciente e responsável da própria vida e que trás consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merece todas as pessoas enquanto seres humanos”[1].

Diante desse conceito, seguro que a verborragia denunciada é violadora da dignidade da pessoa humana e do respeito que merece um processado, vez que tais expressões, por seu poder de repulsa a valores inatos ao homem, não podem constar em um processo, quanto menos pelas mãos de quem o fez.

Mesmo quando da sentença, reconhecida a culpabilidade de um réu, com trânsito em julgado, o Estado lhe aplica uma pena e pode encerrá-lo em um cárcere. Para tanto, foi previsto um devido processo, arrimo do sistema contemporâneo, de tal modo que não pode a pessoa do condenado ser aviltada e humilhada neste caminhar, pois o Estado até se apossa da liberdade de um processado ou condenado, mas nunca de sua dignidade.

O processo penal não pode continuar nessa caminhada, transformando-se em instrumento de ódio e de repulsa ao homem. Nesse sentido, o Ministério Público nunca pode descurar de sua relevantíssima função constitucional, que vai muito além de órgão de acusação.

O constitucional MP se referir a um processado como de personalidade “mitômana, sórdida, calculista e dissimulada” ou, ainda, “peçonhenta, dissimulada, antiética, desleal, embusteira, incontrita e pérfida, própria de alguém sem escrúpulos nem o mínimo de resipiscência” chega às raias do inconcebível!

Sórdido, segundo a definição do Dicionário Aurélio, é aquele agente '1. Sujo. 2. Que provoca nojo ou repugnância (...)'. Ainda que, lamentavelmente, se sinta tal sensação diante de uma prática criminosa, jamais, em absoluto, agentes públicos podem adjetivar o homem assim, sob a insígnia do Estado.

No caso destacado, diante da ausência de confissão da prática criminosa pelo acusado — que lhe é um direito constitucional inapelável —, o MP chega ao extremo de afirmar que “não se pode admitir, como exercício regular de direito, ainda mais de um direito constitucional que é o da ampla defesa, o emprego da mentira, da má-fé processual, da dissimulação, da deslealdade processual, ainda que em defesa própria”.

Se essa hermenêutica acusatória prosperar, parece que se pretende rotular de “peçonhentos, sórdidos, calculistas e dissimulados” todos os acusados que não confessem a prática criminosa imputada, o que, por óbvio, não pode ser admitido em um processo penal em que o acusado é um ente aparelhado com o instrumento de resistência constitucional da autodefesa.

Ademais, necessário que se diga o óbvio: o MP não é julgador da atuação do réu no processo! Teses de defesa são acolhidas ou rejeitadas, mas isso não faculta às partes, nem mesmo ao julgador, tripudiar delas.

Nunca é demais lembrar que não se pode usar do processo como instrumento de “lição de moral” ao processado, porque, com a advertência de Fernandez Carrasquilla, “o direito penal não é um instrumento de moralização ou aperfeiçoamento espiritual do homem, senão um instrumento para a preservação da paz social”[2].

Nessa retórica, só é legítimo ao dominus litis narrar fatos e por eles pedir uma pena. Valorar o homem enquanto ser humano, não há lei alguma que lhe outorgue tal poder.

Nesse sentido, nunca devemos esquecer as concisas lições de Carnelutti: “Coisificar o homem: pode haver fórmula mais expressiva da incivilidade?”[3].

O princípio da dignidade da pessoa humana impõe sérios limites ao jus puniendi estatal e representa o epicentro da ordem jurídica constitucional sendo mais do que um direito fundamental, no dizer de Luiz Gustavo Grandinetti de Carvalho: “É um dos fundamentos do próprio Estado brasileiro”[4].

E tal fundamento do Estado Democrático de Direito não permite o processo penal da humilhação, do livre emprego de expressões injuriosas contra réus.

Não se faculta ao agente público atingir o homem em sua dignidade, mesmo enquanto condenado, porque, se agirem assim, as autoridades resvalam para o que Paulo Queiroz chama de Estado delinquente (“É que o Estado que mata, que tortura, que humilha o cidadão, não só perde qualquer legitimidade como contradiz sua própria razão de ser, que é servir a tutela dos direitos do homem, colocando-se ao mesmo nível dos delinquentes”[5]).

Há, nessa narrativa ofensiva ao homem, evidente desprestígio e falta de compreensão do papel do processado (e do MP!) num Estado Democrático de Direito, que é parte numa relação processual em contraditório, que o iguala em forças e oportunidades ao órgão acusador.

Portanto, não há superioridade do MP sobre o réu no processo penal, de tal feita que o acusado não pode receber censura moral às suas teses, cabendo apenas ao Judiciário, com todo respeito à sua dignidade, julgá-las procedentes ou não.

Por essa razão, o atualizado CPC, sempre fonte subsidiária do processo penal, expressamente censura atitudes desta natureza em seu artigo 78, o qual, no dizer de Nelson Nery Junior: “O representante do MP também tem o dever de urbanidade processual, de sorte que, se lançar expressões injuriosas nos autos, o juiz pode mandar riscá-las”.

Nesse sentido, o civilista aclara que “as expressões proibidas por este dispositivo não são apenas as que poderiam, em tese, configurar crime de injúria (CP 140), e confirma que qualquer expressão aviltante, degradante, licenciosa, de escárnio, indecorosa, de calão não pode ser utilizada”[6].

Dito isso, esperamos que a novel redação do CPC relembre ao Ministério Público o dever de urbanidade que emana das relações interpessoais no processo. E, se assim não o fizer, que torne os magistrados vigilantes da postura ministerial dissidente, para definitiva consagração da cidadania processual.


[1] Constituição do Brasil Interpretada, p. 128/129.
[2] Concepto y Limites del Derecho Penal, Bogotá: Ed. Temis, p. 23.
[3] As Misérias do Processo Penal. p. 5.
[4] Processo Penal em Face da Constituição. p. 27.
[5] Direito Penal – Parte Geral, p. 40.
[6] NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado, 16ª Ed. 2016, fls. 450.

Roberto Lauria é sócio do escritório Roberto Lauria Advocacia Criminal.

 

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